João Eichbaum

As linhas tortas do destino mudam histórias

Ele foi um daqueles meninos para quem, nos ermos das colônias italianas, nos  tempos áureos da Igreja Católica pós-inquisição, se ofereciam vagas de padre. O maior sonho dos pais, contaminados até às entranhas pela crença religiosa, era a vocação sacerdotal de um filho. Consideravam-na uma graça, uma bênção, um prêmio da loteria dos céus.
Então, quando naqueles confins comparecia um padre, sob o pretexto de benzer a família, a casa, as plantações, em troca de algum dinheirinho para a Igreja, era inevitável a pergunta do reverendo aos meninos: "quem quer ser padre"?
Sempre havia pelo menos um menino, que levantava a mão, assertivamente.
Bastava uma visita anual do padre a esses celeiros de futuros sacerdotes, para lotar seminários menores e pré-seminários com meninos que não tinham a menor noção da vida, além do trabalho da roça. E enquanto suas funções biológicas não começassem a cobrar do corpo um comportamento adequado às exigências da natureza, os meninos iam ficando por lá. Rezavam, frequentavam missa diariamente, jogavam bola, gastavam neurônios nas declinações do latim e na acentuação do grego e assim iam levando a vida. Até que as glândulas de reprodução exigissem deles o que o regulamento do seminário não ensinava.
Aí, a maioria, suficientemente alfabetizada, seguia por outros caminhos, que não os da roça, nem os do altar. Mas, o temor de causar decepção aos pais, ou de dar parte de fraqueza,  mantinha lá uns poucos, na esperança de que a oração, os retiros espirituais, a ordenação sacerdotal e a embriaguez da glória pusessem cobro às exigências da natureza.
Ele foi um dos que ficaram. Teve que enfrentar um tropeço inesperado: a convocação para o serviço militar. Por descuido dos padres, que não cumpriram os protocolos necessários para a isenção daquela obrigação, foi compelido a trocar a batina de noviço pela farda de soldado raso. Passou um ano limpando banheiros, ouvindo piadas indecorosas, respondendo a ordem unida, montando e desmontando fuzis, rastejando no lodo, e passando por toda a espécie de tortura nas manobras. Mas, retornou para o noviciado, crente de que Deus o chamava para as fileiras do sacerdócio. Trocou aqueles males pelas renúncias exigidas no serviço do Senhor. Foi ordenado sacerdote.
Suas qualificações levaram a congregação a enviá-lo para a França, a fim de se doutorar na Sorbonne. Então aconteceu o inesperado: sua vocação sacerdotal, que resistira às cruezas do serviço militar, foi apagada pelo amor.
Que lutas travou para renunciar às promessas feitas a Deus, em troca do amor de uma mulher, só ele soube. E a glória sacerdotal lhe abandonou a alma, porque as sensações do amor não ficam só  no corpo.
Mas, no campo de batalha das lutas  pela vida, o amor perdeu sua eternidade. Anos depois, a rotina da velhice se tornou a sala de espera da morte. E no último ato vieram os distúrbios neurológicos, que o deixaram numa casa geriátrica, onde morreu, sob os céus de Paris, sem ter certeza de que lá o receberia Deus.

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